Agradecendo à amiga Gena Teresa, reproduzo aqui esta excelente matéria para nossa reflexão:
AS SETE DOENÇAS QUE ESTÃO MATANDO A NOSSA HUMANIDADE
Nem toda superstição é religiosa, e uma das superstições mais perigosas de nosso tempo nada tem de mística. Ela consiste na crença de que o desenvolvimento da sociedade sempre é algo positivo, e que na busca pelo progresso deixamos para trás apenas o que é obsoleto.
Sete das mentes mais
criativas dos últimos tempos atacaram essa superstição. É verdade, a tecnologia
e a evolução dos costumes podem transformar nossas vidas aqui na Terra em um
paraíso. Mas é possível que nesse processo deixemos para trás algumas das
condições necessárias para uma vida plena, feliz e amorosa – uma vida com
sabedoria, em outras palavras. Se desejamos rumar até o paraíso,
precisamos saber distingui-lo do inferno.
Para sete pensadores,
nossa sociedade está enferma, e eles diagnosticaram as sete doenças que a
acometem.
1- A ESPETACULARIZAÇÃO DE
NOSSAS VIDAS
Em 1967, o filósofo
francês Guy Debord escreveu A Sociedade do
Espetáculo, em que propõe que no
mundo moderno somos induzidos a preferir a imagem e
a representação da realidade à própria realidade concreta.
Para Debord, as imagens,
apenas sombras do que existe, contaminaram nossa experiência cotidiana,
levando-nos a renunciar à vivência da realidade tal como ela é. Toda a vida em
sociedade virou um acúmulo de espetáculos individuais e coletivos, tudo é
vivido apenas enquanto representação perante os outros.
Compartilhar status,
instagrams, tweets: os palcos e as plateias mudaram, a encenação ficou
cotidiana. Na sociedade do espetáculo em que estamos submersos, mesmo os
relacionamentos são conduzidos pela mediação de imagens. Passando a intermediar
as relações com imagens e simulacros de sentimentos moldados pelas redes
sociais, voluntariamente renunciamos à qualquer tentativa de reconhecer os
aspectos difíceis e desafiadores dos relacionamentos verdadeiros.
Debord entendia que o real
envolvimento em relacionamentos humanos foi trocado por uma identificação
passiva com a posição de espectatores recíprocos. Nesse esquema, cada um
assiste, curte e compartilha o outro em seu palco particular, aguardando a sua
vez de ser assistido, curtido e compartilhado.
Há, assim, um gradual
empobrecimento das relações humanas. Isoladas, as pessoas tornam-se intimamente
mais inseguras, e portanto mais fragilizadas. Essa fragilização torna os
indivíduos mais influencíaveis e facilmente manobráveis.
2- A MENTIRA ENQUANTO
NARRATIVA
O filósofo e
neurocientista norte americano Sam Harris escreveu
em 2013 o livro Lying (Mentindo),
na verdade um ensaio em que ele demonstra que a mentira é o pecado que
pavimenta todos os demais pecados da modernidade.
Estimular socialmente a
necessidade da mentira é uma decorrência lógica de uma sociedade do espetáculo,
em que mentir é muito mais do que ocultar a verdade. A mentira chega ao ponto
de desconstruir a verdade ao confundi-la com uma narrativa – algo que serve,
portanto, ao próprio espetáculo.
Dizer tudo é relativo é
um slogan ultrapassado. Agora, tudo é narrativa, e passamos a
acreditar que não há nenhum fato que não possa ser redefinido como uma forma de
narrativa do protagonista.
Após séculos identificando
Deus como A Verdade e o diabo como O Pai da Mentira, a sociedade
atual encara o conceito de “verdade” com ironia e ceticismo. Uma das
características de nosso tempo é a ideia de que a verdade é relativa, e de que
tudo depende do ponto de vista do sujeito. O relativismo moral é uma mentira
cuidadosamente elaborada para que ela própria pareça uma verdade.
O problema é que a linha
moral entre verdade e mentira é a única que separa nossa caminhada coletiva do
rio negro da barbárie e da superstição. E nem precisamos apelar para as
virtudes morais do leitor: já está
provado que a melhor solução de
qualquer conflito humano é a colaboração e a confiança mútua. Assim, a posição
de vantagem perceptível a curto prazo torna-se uma enorme derrota logo adiante.
3- O PROTAGONISMO
O produtor britânico Adam Curtis idealizou o documentário The Century of the Self (O Século do Eu). Nessa obra imperdível (disponível aqui legendado), ele demonstra como a publicidade utilizou as
teorias psicológicas sobre o funcionamento da mente humana
para tentar manipular o desejo do público e induzir todos ao consumo.
Não havia lugar para
sutilezas. Um pouco comicamente, algo banal como vender carro na TV utilizava
estratagemas que tentavam invocar alguns dos desejos sexuais mais primitivos do
espectador. Era cômico, mas eficiente: a venda de carros aumentava. A realidade
humana é que talvez seja meio engraçada. Podia-se, portanto, dar um passo além.
Assim, a seguir houve uma
evolução menos ingênua e grosseira dessa publicidade, uma forma de explorar os
medos e anseios do público para além do comercial de automóveis fálicos.
Afinal, porque tentar associar o produto com os desejos íntimos do consumidor
se era possível, pela indústria de entretenimento, influenciar e talvez até
determinar esses desejos íntimos?
A partir de 1960, o
movimento da contracultura ensinou
às grandes multinacionais e agências de publicidade que dava lucro desenvolver
e disseminar entre a pessoas a noção de individualismo como um estilo de vida.
Daquele momento em diante,
os meios de comunicação de massa (cinema, televisão, música popular) passaram a
vender a seguinte ideia: somos todos nós indivíduos únicos, especiais, e temos
todos o direito de explorar a riqueza luminosa de nossa individualidade.
Disso surgiu
o protagonismo. Afinal, numa sociedade em que tudo é espetáculo, a
decorrência lógica é que todos, estimulados em seu individualismo, considerem-se
protagonistas.
As redes sociais como
Facebook, Instagram, Twitter e Tumblr só querem uma única coisa de nós: que as
utilizemos cada vez mais, que as tornemos uma parte indispensável de nossa
vida. E o que fazem para isso é criar espaços em que podemos construir nossa
imagem pessoal perante os outros de forma que pareçamos protagonistas de uma
narrativa interessante.
O protagonismo estimulado
pela nossa sociedade torna, subjetivamente, todas as outras pessoas meros
coadjuvantes de nossa história pessoal.
Todos os outros seres humanos ao nosso redor são considerados apenas na exata
medida em que colaboram ou não com o desenvolvimento dessa pequena novela que
repetimos a nós mesmos em nossa cabeça.
E um dos aspectos mais
nocivos disso é a ideia de protagonismo social, muito difundida no
ativismo das redes sociais. Segundo essa proposta, apenas aqueles que se
enquadram em determinada categoria minoritária ou oprimida poderiam lutar
ativamente contra as condições de opressão. Todos os demais indivíduos
deveriam, portanto, permanecer passivos diante da luta, em estado de aprovação
bovina. Assim, somente mulheres poderiam protagonizar o combate ao
machismo, somente afrodescendentes poderiam protagonizar o combate ao
racismo. Segmentando ainda mais a sociedade, essa proposta impede que todos os
seres humanos, unidos, lutem contra tudo aquilo que for um problema
fundamentalmente humano – como o são os preconceitos.
4- AS RELAÇÕES LÍQUIDAS
Muito já se falou da
teoria do sociólogo polonês Zygmunt Bauman sobre a sociedade líquida. Por
“líquida” entende-se uma sociedade em que não há papeis sociais rígidos nem
certezas sólidas. Tudo, portanto, é fluído e não somos obrigados a
assumir um compromisso duradouro com qualquer papel social ou pessoa.
Que emprego escolher, com
quem nos casar, que estilo de vida adotar: não há qualquer orientação sobre o
que é certo e errado diante de duas escolhas, e tudo o que nos é dito é que
temos total liberdade para decidir. O problema é que cada escolha por um
caminho implica na renúncia de outro, e disso irremediavelmente surgem dúvidas
e a sombra do arrependimento.
Essa liberdade, inserida
no contexto da sociedade que impõe ao indivíduo a obrigação de espetacularizar
sua vida e expressar uma suposta individualidade de protagonista bem sucedido,
é sentida como um fardo. O resultado são indivíduos acometidos de ansiedade
constante, inseguros, fragilizados. E pessoas fragilizadas são mais facilmente
influenciáveis.
Transportando isso para os
relacionamentos, Bauman salienta que a facilidade com que hoje podemos
abandonar uma relação, transitando de um envolvimento afetivo para o outro,
sempre na busca de uma idealização inalcançável do sujeito amado e do próprio
amor, traz também ansiedade e acarreta o empobrecimento das relações humanas.
Como Bauman expõe no vídeo
acima, atualmente nós desfazemos nossos elos com os outros com a facilidade de
quem desfaz uma amizade no Facebook: basta um clique. Em um planeta
superpovoado, parece que sempre há a nossa disposição outras tantas pessoas com
as quais estabelecer conexão – o problema é que no final nunca estabelecemos
conexões verdadeiras com ninguém.
5- A FALTA DE TEMPO
Em Mal-Estar na Atualidade, o psicanalista brasileiro Joel Birman alerta que a racionalização das práticas sociais
usurpou dos indivíduos o controle do seu tempo. A forma como utilizamos nosso
tempo pessoal está cada vez mais sendo pré-determinada pelas demandas sociais, impondo
que vivamos em um frenesi initerrupto.
Hoje em dia, estamos
sempre super atarefados. A sociedade nos seduz com o sonho de sermos
protagonistas de nosso espetáculo privado, mas o caminho para esse sonho está
ladrilhado com tarefas, microtarefas e toda espécie de atividade que exige
nossa constante atenção. Isso consome praticamente todo o nosso tempo desperto.
Como resultado, embora
estejamos hoje em dia sempre atarefados, parece que jamais fazemos o
suficiente. Disso vem a sensação estranha de que estamos vitimizados pela
procrastinação: nunca temos tempo de fazer tudo o que precisamos para cumprir
com a promessa de que seremos protagonistas excepcionais.
O problema é que um ponto
central de qualquer projeto de vida é a possibilidade de revisarmos nossas
decisões e estratégias com atenção e tranquilidade, refletindo detidamente
sobre aquilo que estamos fazendo. A pressa nos impede de analisar quais coisas
são realmente importantes para nós e quais são as nossas prioridades.
Sem tempo o suficiente
para investigar a motivação por trás de cada tarefa cotidiana, desperdiçamos
muito de nosso tempo em atividades que podem ser valorizadas socialmente, mas
que intimamente significam muito pouco para nós. Mais que isso, sem podemos nos
dar ao luxo de perder tempo, deixamos de ter direito ao ócio necessário à
criatividade e à fruição dos prazeres.
6- O HIPERCONSUMISMO
O filósofo francês Gilles Lipovetsky cunhou o termo hiperconsumo. Seríamos, neste momento da história,
não meros consumidores, mas hiperconsumidores. Em uma estrutura na qual o
crescimento econômico depende do consumo crescente da população, estamos todos
inseridos numa dinâmica social baseada na compra contínua. Se pararmos de
consumir febrilmente, há um colapso da economia.
Não há nada de
essencialmente errado com o consumo. O mercado de consumo tem sim seus espaços
legítimos de atuação. Porém, a partir de 1970, segundo Lipovestky, ingressamos
na fase do hiperconsumo. Trata-se de uma fase essencialmente subjetiva, pois os
indivíduos desejam adquirir objetos não pela sua utilidade ou necessidade, mas
para aliviarem sua ansiedade de aceitação e integração na coletividade.
Os produtos são consumidos
enquanto ato de expressão da individualidade e do estilo de vida do
hiperconsumidor. Compramos produtos, mas estamos em busca de sensações,
vivências e a construção de uma imagem social que nos traga prestígio.
Gastamos pequenas fortunas
em smartphones para não utilizarmos sequer 20% de sua capacidade
computacional. Olhamos para as avenidas engarrafadas de nossas cidades e vemos
potentes utilitários transportando apenas uma pessoa, o motorista. A construção
social da moda e da tendência garante que roupas ainda em perfeito estado
sejam enfiadas no fundo do guarda roupa, obrigando-nos a comprar novas roupas
que nos protejam da ridicularização social.
O conceito de
obsolescência programada, a noção de desvalorização dos bens de consumo
adquiridos e o status social associado a novas versões dos mesmos
produtos assegura que tenhamos que trocar de carro, smartphone, televisão
e computador com uma frequência que é conveniente ao sistema de produção atual,
mas irracional do ponto de vista do consumidor e da capacidade de exploração do
meio ambiente.
7- A IRONIA
“Não se engane, a ironia
nos tiraniza”, vaticinou o escritor americano David Foster-Wallace em seu ensaio E Unibus Pluram. E seu alerta
precisa ser levado a sério.
Ironia consiste
essencialmente em querer dizer coisa distinta daquela que está sendo
expressamente dita, causando o efeito de humor. Portanto, a ironia flerta com a
mentira e, ao lado do conceito de narrativa, é outra forma eficaz de deteriorar
socialmente o valor da verdade em nossa sociedade. Mas a ironia é ainda mais
nociva, pois não para seu trabalho corrosivo por aí – a ironia mina a própria
capacidade do indivíduo vivenciar e expressar socialmente sentimentos
verdadeiros e significativos.
Não apenas a sinceridade e
a paixão estão hoje fora de moda, alerta Foster-Wallace, mas atualmente é sinal
de distinção social e de inteligência estar levemente entediado e ostentar uma
leve, cínica, desconfiança sobre todas as coisas: expressões faciais, gestos e
comentários que informam, com ar de superioridade, que “já vi de tudo nesse
mundo”, que “sei que nada é o que parece ser” e que “acho tudo isso que você
leva tão a sério muito engraçado”.
A ironia que começou como
um espírito de vanguarda no passado, do qual dotadas as pessoas mais
inteligentes e sagazes, tornou-se agora uma cultura de massa. Os meios de
comunicação, segundo Foster-Wallace, utilizam elementos do pós moderno
como a metalinguagem, o absurdo, o sarcasmo, a iconoclastia e a rebelião e os
modela para fins de consumo.
A partir de então, a
ironia, que antes era um instrumento fortalecedor do espírito contra os dogmas
e as crenças sacralizadas mas opressoras, tornou-se uma força debilitante do
próprio espírito humano. Pois a ironia é a forma irreverente de o
desprezo anunciar que está chegando.
Citando o poeta
americano Lewis Hyde, Foster-Wallace expõe que “a ironia tem uma
utilidade apenas emergencial, e estendida no tempo, torna-se a voz do
prisioneiro que passou a gostar de sua cela”. Ela perde seu potencial
contestador e torna-se uma forma sarcástica de conformar-se e adaptar-se a tudo
aquilo que nos limita. Pois a ironia também atinge as aspirações a gestos
heróicos e elevados sentimentos.
A ironia, embora realmente
prazerosa, tem uma função essencialmente negativa, pois é crítica e
desconstrutiva, “boa para limpar o terreno”. Porém, a ironia, após seu trabalho
de destruição e depuração, é incapaz de construir algo
verdadeiro, é inábil em propor a criação de algo que substitua, e para
melhor, aquilo que ajudou a destruir.
Ilustrações nossas (fotos da Internet).
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