terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Dialogando com a Sombra

Para a reflexão de todos nós, publico este artigo de Marilu Martinelli, muito atual, sobre a sombra. Da Era Medieval aos tempos modernos, a sombra persegue os humanos. "Decifra-me ou devora-me" parece ser o seu jargão. Precisamos decifrá-la, assimilá-la, compreendê-la.
Eis o artigo:

“Olhei, olhei, e vi o seguinte:
Aquilo que pensava ser você
Nada mais era do que eu próprio”

Interrogatório medieval para caça às bruxas
Desde que o mundo é mundo periodicamente existe a chamada caça as bruxas. Por que será? 
Esse movimento de exceção e violência surda ou ativa acontece sempre que uma ou mais pessoas, ou mesmo uma comunidade social perde o rumo de seus propósitos e valores estruturais. É quando individualmente ou coletivamente surgem as tendências a exclusão, violência, disputas e corrupção. Afinal de contas, uma nau sem rumo nem timoneiro acaba afundando. Sob o ponto de vista individual isso acontece quando alguma tendência ou característica de uma determinada pessoa é considerada por ela mesma vergonhosa, perversa ou indigna, e daí, por não querer dialogar com seu lado escuro, sua sombra, não encara os próprios defeitos, conseqüentemente não os supera, e então assume ares de superioridade, como se vivesse em estado de virtude absoluta.  Como essa pessoa acredita que atingiu um estágio mais elevado que as demais, ela se permite externar sua prepotência, que se traduz como resistência a quebra de padrões, ao diferente e surpreendente. Tudo isso porque se sente muito incomodada com a negação do que carrega dentro de si, o lado negro do seu coração. 
Acontece que essa resistência enganosa fortalece os seus defeitos a ponto de se ver obrigada a enxergá-los num determinado momento, e então o conflito se instala. É quando, por não admitir os defeitos em si mesma, projeta-os nos outros. Um grupo de indivíduos com essa problemática contamina uma comunidade, as relações entre eles a partir de então se nutrem da sombra coletiva, e de repente surge a caça as bruxas. É um movimento daninho, que às vezes assume dimensões abomináveis como a perseguição religiosa, a perseguição racial e cultural a negros, índios, ciganos, etc.. Inspira movimentos políticos e sociais violentos e abomináveis como o nazismo, a Klu Klux Klan, os Skin Heads, o terrorismo e a homofobia. 
Uma das caças às bruxas mais conhecidas foi a histeria coletiva que acometeu a comunidade da cidade de Salem nos Estados Unidos, quando inocentes foram mortos devido a uma calúnia levantada por um grupo de adolescentes. 
A caça às bruxas alimenta toda forma de tirania e discriminação, e impõe limites rígidos por temer o poder da livre escolha e a expressão criativa de cada um. O perseguidor sempre abomina o perseguido porque enxerga nele o que não admite ver em si mesmo, e teme perder o poder fictício que crê possuir. O medo do diferente, do desconhecido, e de olhar para si mesmo em profundidade estimula insegurança, rejeição, discórdia, preconceitos e violência de todos os matizes. A caça às bruxas pode surgir de maneira aparentemente inofensiva, às vezes como uma fofoca, uma maledicência venenosa ou irresponsável. Essa é uma maneira sub-reptícia e corrosiva de perseguição que atua nos subterrâneos da mente das pessoas e mina relações interpessoais, enquanto destorce fatos e princípios. A fofoca daninha revela o desespero de indivíduos para provar a si mesmos que seus defeitos não existem, e a crer que as outras pessoas são portadoras deles de forma exponencial. Muitas vezes uma fofoca aparentemente sem importância atinge tamanha força que leva à destruição de parcerias, sonhos e projetos grandiosos. Por outro lado, a fofoca geralmente surge da inveja e do medo, mas também da falta de transparência de intenções e da ambigüidade e dubiedade de atitudes daquele que é alvo dela. 
luz e trevas, a eterna dualidade
Tudo isso nos mostra o quanto é importante o autoconhecimento, a coragem e a honestidade, a vivência dos valores humanos, enfim. As transformações pessoais começam pelo diálogo com a própria sombra. Pois é das trevas que nasce a luz. Esse é o modo de abrir portais interiores para a compreensão e aceitação de si mesmo, e das potencias negativas e positivas que carregamos.  A partir daí superamos limites e remapeamos os caminhos da alma. Isso descontamina o olhar e redefine nosso comportamento, a compreensão do semelhante, além de definir novos ideais e atitudes perante a vida. . Encarar a própria sombra pode transformar adversários em aliados e aproximar pelo coração aqueles que se sentem acuados, e por isso preferem construir trincheiras a compartilhar idéias e afeto. 
Aceitar que temos um lado escuro, ou pelo menos nebuloso e sombrio é o primeiro passo para superar a tirania do ego vaidoso, manipulador e controlador que alimenta uma constante guerra contra o que acredita que seja uma ameaça. O ego personalidade se alimenta da ignorância espiritual, por isso oscila entre preferências e aversões radicais, gerando separatividade e agressividade. O exercício das praticas previstas em todas as tradições espirituais leva à vivência natural e diária dos valores humanos. Esses valores então revelam o esplendor da nossa humanidade, e abrem portais interiores que nos convocam para agir em parceria, como competentes, corajosos e amorosos agentes de transformação. Então, o divino em nós se revela, ilumina a sombra e permite o compromisso do corpo, da mente e do espírito com a Verdade.

“Todos os opostos compartilham uma identidade implícita. O ter e o não-ter surgem juntos, o difícil e o fácil complementam-se, o comprido e o curto contrastam-se, o alto e o baixo apóiam-se um no outro. Não se concebe a existência da Terra sem a existência do Céu, nem do princípio negativo sem o positivo. No entanto, as pessoas continuam a julgar e a discutir; tais pessoas são tolas ou ignorantes. Não compreendem os princípios do universo, nem a natureza complementar de toda a criação”. (Lao Tze)

Marilu Martinelli
(Atriz, jornalista, escritora, educadora, professora de Mitologia Universal e Filosofia Oriental, consultora para formação do  Educador em Valores Humanos e Formação de Lideranças Empresariais e Gerenciamento em Valores. Professora da Unipaz e Unibem. Especialista em  Desenvolvimento Humano. Professora convidada da Universidade Católica de Arequipa e Universidade Federal de Lima - Peru. Professora convidada da PUC - SP. Site: www.marilumartinelli.com.br; e-mail: gayatri@hotmail.com) 



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